domingo, 16 de novembro de 2014

Os Versículos Satânicos

No final das últimas férias de Verão, em Agosto, decidi ler um livro que estava desde 1989 perdido numa estante cá de casa: "Os Versículos Satânicos" de Salman Rushdie (1988). 
Como muita gente, já tinha ouvido falar do autor e da polémica que esta obra tinha gerado, mas não fazia ideia do que tratava a história ali contada. 
Pois bem, não vou aqui revelar o enredo pois os "spoilers" são desagradáveis, principalmente quando se trata de uma história tão interessante e imprevisível. Vou cingir-me à minha opinião da obra e à polémica que dela resultou, até porque tem a haver com religião, um tema comum aqui no meu blogue. 
Em primeiro lugar digo que a obra não é de leitura fácil ou, pelo menos, exige uma boa atenção do leitor, não é algo que possamos ler na diagonal enquanto vamos ouvindo a televisão. Mas a história é interessante e tem um estilo pouco comum que Rushdie aperfeiçoou: o realismo mágico.
Apesar de todos os tumultos que causou, e apesar de ser um facto que a religião está bem presente na obra, a verdade é que para quem interpreta a narrativa, a religião tem um papel secundário. 
O que Rushdie quis fazer foi explorar as frustrações dos imigrantes e as falhas da integração multi-cultural. Claramente, o autor quis mostrar como a imigração aumenta a consciência de que as percepções da realidade são relativas e frágeis, assim como a natureza da fé religiosa e como é influenciada pela política. O autor parece ter assumido que comunidades e culturas diferentes partilham uma base comum de moralidade onde um diálogo e um entendimento podem ter lugar. Talvez tenha sido por isso que subestimou a natureza implacável e hostil que a obra provocaria no mundo islâmico. O que até é irónico já que um dos temas do livro é o perigo dos sistemas de crenças absolutistas.   
Não sendo eu muçulmano, de nada serve dizer que não encontrei nada particularmente ofensivo na obra. É verdade que parte da obra foca a vida de Maomé o que só por si já é extremamente ofensivo para o Islão. Para mim e para o comum dos ocidentais, é difícil (para não dizer quase impossível) imaginar algo que um escritor pudesse escrever que me levasse a querer genuinamente vê-lo morto. Nada me poderia ofender a esse ponto. O nosso Nobel, Saramago, no seu livro "Caim", chega a chamar "filho da p..." a Deus mas ninguém se sentiu particularmente agastado com isso. Quem não gosta, pode limitar-se a mal-dizer o autor e a desencorajar as suas obras aos outros, mas num país com liberdade de expressão, fica-se por aí. 
Mas no caso de Rushdie, atingiu-se um dos maiores marcos de intolerância que se possa imaginar no final do século XX. 
Na altura, o aiatola Khomeini lançou uma fatwa a Rushdie. O que isto quer dizer é simples: ordenava todos os muçulmanos a matarem Rushdie, ou se não o conseguissem, pelo menos denunciar a sua localização para que outros o fizessem. E relembro que este não era um muçulmano extremista qualquer, era o aiatola, o líder religioso máximo da altura, uma espécie de papa do Islão. E não só ordenou a morte como proibiu a leitura do livro, ou seja, as pessoas nem tinham permissão de conferir se era realmente ofensivo, tinham apenas de ter fé cega na palavra do seu líder e matar em seu nome.  
Senhoras e senhores, é este o nível que a intolerância religiosa pode atingir no mundo actual: um líder religioso, ouvido por milhões de pessoas, ordena por sua deliberação pessoal a morte de um individuo estrangeiro por escrever ficção. Dificilmente consigo imaginar um cenário tão chocante, opressivo e deprimente. É uma distopia ao nível das criadas por Orwell ou Kafka.  

Todos temos ideia das leis absolutistas horríveis que existem no mundo islâmico, mas o extraordinário aqui foi que a sentença não ocorreu lá num tribunal religioso na Arábia Saudita. Foi aqui ao lado, em Inglaterra! Ou seja não há sitio nenhum onde nos podemos esconder. Podemos viver num país livre mas se escrevermos algo que ofenda alguém poderoso do outro lado do mundo, podemos ser condenados à morte. E apesar de Rushdie ter sobrevivido a vários atentados, que dizer das inúmeras outras vítimas? 
O tradutor japonês da obra foi brutalmente apunhalado até à morte, o tradutor italiano ferido gravemente, o editor norueguês três vezes baleado (sobreviveu depois de ter estado em coma) e o tradutor turco foi o alvo principal de um atentado que resultou no "massacre de Sivas" onde morreram 35 pessoas. Todos estes indivíduos podiam desprezar a obra e o seu autor, mas por terem feito o seu trabalho que consequentemente os ligou à obra, foram assassinados...

O Islão e a liberdade de expressão são incompatíveis. Mas não se pense que o cristianismo está a salvo de criticas! É verdade que já não temos inquisição, mas quando ocorreu todo este episódio de Rushdie o papa da altura, João Paulo II, apressou-se a lamentar não os actos atrozes perpetrados por estes extremistas selvagens mas o facto de Rushdie ter escrito um livro ofensivo. 

A liberdade de expressão dita que qualquer pessoa pode escrever sobre o assunto que quiser, e é certo que todos têm o direito de se sentir ofendidos e responder inclusive em tribunal se assim o entenderem. Mas não podemos aceitar que alguém esteja tão ofendido que justifique matar pessoas que nem sequer estão directamente relacionadas com quem nos ofendeu. Aí a sociedade deve intervir, pois senão estaremos reduzidos novamente às leis da selva.          

Salman Rushdie levará esta sentença para o túmulo já que após a morte de Khomeini, a fatwa não pode ser revogada. Esta obra recebeu o prémio Whitbread em 1988 e nesse mesmo ano foi finalista do Booker Prize. Entretanto Rushdie recebeu o título de Sir da realeza britânica e é um dos maiores nomes da literatura contemporânea.