Ainda no rescaldo da minha última publicação sobre o Prós e Contras de 8 de Dezembro, gostaria aqui de analisar o comentário que o Padre Fernando Calado Rodrigues fez ao programa na sua crónica "Ressonâncias" no Correio da Manhã do dia 12 de Dezembro (2014) com o título "Deus existe?"
Nessa crónica, a afirmação destacada foi "Em todo o ateu habita um crente, que por vezes leva a melhor e então acontece a conversão." (e embora não tenha sido destacada, logo a seguir ele diz "e todo o crente é assaltado por dúvidas que o podem levar ao abandono da fé.")
Ora bem, esta ideia avançada pelo Padre de que em todo o ateu existe um crente não é nova, longe disso, é apenas uma reformulação do antiquíssimo argumento que diz que os ateus sabem que Deus existe, simplesmente o negam.
A palavra "ateu" parece suscitar nas pessoas a ideia de ser um dogma ou uma forma de vida como dizer que se é marxista ou republicano ou democrata quando na verdade é apenas a etiqueta dada a uma pessoa que tem uma opinião concreta num assunto muito específico: não acredita na existência de Deus(es). Nada mais que isso. Não tem mais nada associado, não implica acreditar na evolução natural, ser fã número um da ciência e repudiar tudo o que é religioso. Portanto, dizer que um ateu é um crente que não quer "sair do armário" não faz mais sentido que dizer que quem nega a existência de fadas sabe que elas existem, só não quer admitir.
Para os crentes esta comparação pode não parecer adequada, mas teoricamente para os ateus ajusta-se já que não acredita nem num nem noutro, são igualmente inexistentes.
Dizer que "por vezes (o crente) leva a melhor e acontece a conversão." não faz muito sentido, já que a larga maioria das pessoas que se proclamam ateias não o faz só para ser do contra, mas porque não encontram bons motivos ou provas da existência de Deus. Portanto não se trata de termos um crente dentro de nós a lutar para sair, trata-se de, se confrontados com provas convincentes, mudarmos de opinião.
Depois outra questão é a própria conversão. Aos olhos do Padre, parece óbvio que se alguém descobrir Deus, vai imediatamente converter-se ao cristianismo, quando na verdade, a religião que se abraça é geralmente a mais relevante na comunidade onde estamos inseridos, em Portugal é claramente o cristianismo, mas se algum ateu que vive na Indonésia passa a ser crente, escolherá provavelmente o islamismo. E sendo religiões antagónicas, como pode o Padre, ou quem quer que seja, dizer que a dele é que é a correta e não a outra?
E isto partindo do principio que o novo crente se associa a alguma religião, pois, como se sabe, acreditar em Deus não implica estar afiliado a nenhuma congregação.
Vamos supor que um ateu um dia tem uma epifania e passa a acreditar na existência de uma entidade inteligente supra-natural que controla as leis do universo. Como é que passamos disto para o cristianismo, que diz que Deus se preocupa com os nossos assuntos pessoais, nomeadamente com quem vamos para a cama, que tipo de roupa vestimos, o que pensamos, e que há muitos anos criou o homem e a mulher e disse para eles não comerem uma fruta que eles comeram e por isso amaldiçoaram a humanidade para sempre, mas Deus veio à Terra no seu alter-ego e filho Jesus Cristo para morrer (e depois ressuscitar) pelos nossos pecados para que Deus nos perdoasse e que se não seguirmos os seus ensinamentos passaremos a eternidade a sofrer...mas ele ama-nos.
Como é que alguém pode passar da ideia de uma entidade superior para estas histórias mitológicas que todas as religiões têm?
Se alguém disser hoje que acredita em Zeus que é o rei dos Deuses que vivem no topo do Monte Olimpo e que tem um filho semideus chamado Hércules toda a gente achará ridículo. Mas vamos não esquecer que os deuses gregos foram idolatrados durante cerca de 3000 anos, mais que tempo que o cristianismo, milhões de pessoas e gerações viveram e morreram a acreditar neles. As histórias bíblicas são igualmente fantasiosas, quem sabe se daqui a mil anos, ou até menos, não acharemos o cristianismo também ridículo?
"A descoberta consiste em ver o que todos viram e em pensar o que ninguém pensou."
sábado, 20 de dezembro de 2014
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Prós e Contras: Deus tem futuro?
No passado dia 8 de Dezembro, passou na RTP mais um programa de "Prós e Contras", desta vez com a questão "Deus tem futuro?" como tema. Vi com muita atenção o programa e devo dizer que apesar de algo decepcionante, foi exactamente aquilo que eu esperava que fosse: uma sucessão de declarações pseudo-filosóficas, ambíguas e vagas, sempre proferidas com mil e um cuidados para não ferir a susceptibilidade dos restantes comentadores e assim que alguém destoou deste guião é imediatamente etiquetado como fundamentalista, inculto, ignorante e até mentiroso.
Olhando, em primeiro lugar, para a escolha do painel, tivemos os três principais monoteísmos representados: o cristianismo através do Padre Anselmo Borges e da Pastora da Igreja Evangélica Presbiteriana Maria Eduarda Titosse, o islamismo através do Sheikh David Munir e o judaísmo através de Joshua Ruah. Tivemos depois um convidado para fazer o papel de autoridade cientifica imparcial, o professor de física Carlos Fiolhais. E por fim, não poderia faltar num debate sobre Deus, um ateu: o artista plástico e pintor Pedro Cabrita Reis. A juntar a estes, e como sempre acontece, houve uns quantos convidados na plateia que tiveram direito a alguns minutos de antena. Na minha opinião acho que teria sido interessante se tivessem convidado um budista e um politeísta (por exemplo hindu) para dar uma perspectiva diferente daquela a que estamos habituados com as religiões abraâmicas.
Perante este cenário, e tendo em conta que a questão do programa era se "Deus (em abstracto) tem futuro?" e não propriamente as divisões e interpretações entre as várias religiões, era óbvio que o debate se iria polarizar em duas correntes: os religiosos a acharem que sim (nem poderia ser de outra forma) e os ateus a acharem que não.
E de facto foi isso que aconteceu. Quando a conversa não era apenas declarações politicamente correctas mas um "debate" com argumentos (embora diga-se que nesse departamento foram todos bastante fracos, o Matt Dillahunty não teria dificuldade em levar os intervenientes ao desespero) era quase sempre invariavelmente entre o padre e o ateu. O Padre Anselmo Borges chegou até a utilizar o mais básico e patético argumento para Deus: "Não consegue provar que ele não existe." Eu nem queria aqui mencioná-lo pois sinto-me como se estivesse a bater num ceguinho ou a roubar o brinquedo a um bebé. Digo apenas: até provar que as fadas e os unicórnios não existem, eu acredito neles.
O programa foi seguindo com esta conversa vaga e puritana até que interveio um dos convidados da plateia. Em apenas alguns minutos (os poucos a que teve direito) este individuo debateu mais que o artista ateu no programa inteiro. Levou todos os representantes religiosos a unirem-se contra ele e a atacar o seu conhecimento e sinceridade em vez de responderem directamente às suas questões. Quem era este individuo? Carlos Esperança, presidente da direcção da Associação Ateísta Portuguesa (AAP).
Portanto, vamos ver se eu entendi bem. Temos em Portugal uma associação de ateus cuja função de existência é debater estas questões e o seu presidente está disposto a vir falar ao programa, mas em vez de lhe dar um lugar à mesa para que possa verdadeiramente expor a posição ateia, dão-lhe apenas cinco minutos para falar e no seu lugar convidam um artista plástico que por acaso é ateu?! Eu não tenha nada contra o senhor Pedro Cabrita Reis que me pareceu um grande intelectual bem intencionado, mas esta situação seria semelhante a em vez de dar lugar à mesa ao Padre, dá-lo a um individuo que por acaso ao domingo vai à missa. É de uma incoerência que classificaria de amador se não desconfiasse dos motivos por que ocorreu.
O senhor Carlos Esperança colocou em cima da mesa aquilo que realmente se devia estar a debater. O público não está interessado em filosofias sobre a natureza do transcendeste humano nem precisa que lhes ensinem a ter fé, isso é com cada um. O que motivou este debate para começar foi o momento conturbado que vivemos com ameaças de grupos religiosos extremistas como o ISIS e debates inter-religiosos como o que ocorreu recentemente na Turquia. Teria sido muito mais útil discutir a real utilidade da religião, ou do conceito de Deus, no mundo actual e como combater os grupos que fazem uma interpretação perigosa dos livros sagrados. Como Esperança apontou, a religião não devia ter esta presunção altiva de superioridade e de que é apenas a busca pelo divino e pelo transcendente quando é responsável por muitas das guerras que se travaram e continuam a travar nos dias de hoje.
Mas quando ele disse ao senhor Sheikh que negar a ligação do Estado Islâmico ao islamismo é como negar a ligação do catolicismo à inquisição, ficou "o caldo entornado". A partir daí os representantes deixaram de querer saber o que ele tinha a dizer e preocuparam-se em mandá-lo ler os livros sagrados que, apesar de ele ter afirmado repetidamente que tinha lido, o preferiram considerar dogmático ou defender a religião da "contra religião".
Basicamente o que eles quiseram dizer é isto: "Se o senhor leu os livros e ficou com uma opinião desfavorável da minha religião, vá lê-los outra vez até ter uma opinião favorável, depois falamos."
É natural que os senhores que ali foram representar a suas religiões só concordaram em fazê-lo se o seu "adversário" fosse uma versão "soft" de ateu. Daqueles que tem medo de dizer algo que possa ser considerado ofensivo e que gosta de se perder em debates filosóficos em vez de tratar o que é factual: a religião é hoje um problema e não uma solução.
Cá em Portugal estão muito mal habituados a ver as suas crenças desafiadas. O que fariam num debate com Richard Dawkins, Daniel Denett ou o falecido Christopher Hitchens?
Olhando, em primeiro lugar, para a escolha do painel, tivemos os três principais monoteísmos representados: o cristianismo através do Padre Anselmo Borges e da Pastora da Igreja Evangélica Presbiteriana Maria Eduarda Titosse, o islamismo através do Sheikh David Munir e o judaísmo através de Joshua Ruah. Tivemos depois um convidado para fazer o papel de autoridade cientifica imparcial, o professor de física Carlos Fiolhais. E por fim, não poderia faltar num debate sobre Deus, um ateu: o artista plástico e pintor Pedro Cabrita Reis. A juntar a estes, e como sempre acontece, houve uns quantos convidados na plateia que tiveram direito a alguns minutos de antena. Na minha opinião acho que teria sido interessante se tivessem convidado um budista e um politeísta (por exemplo hindu) para dar uma perspectiva diferente daquela a que estamos habituados com as religiões abraâmicas.
Perante este cenário, e tendo em conta que a questão do programa era se "Deus (em abstracto) tem futuro?" e não propriamente as divisões e interpretações entre as várias religiões, era óbvio que o debate se iria polarizar em duas correntes: os religiosos a acharem que sim (nem poderia ser de outra forma) e os ateus a acharem que não.
E de facto foi isso que aconteceu. Quando a conversa não era apenas declarações politicamente correctas mas um "debate" com argumentos (embora diga-se que nesse departamento foram todos bastante fracos, o Matt Dillahunty não teria dificuldade em levar os intervenientes ao desespero) era quase sempre invariavelmente entre o padre e o ateu. O Padre Anselmo Borges chegou até a utilizar o mais básico e patético argumento para Deus: "Não consegue provar que ele não existe." Eu nem queria aqui mencioná-lo pois sinto-me como se estivesse a bater num ceguinho ou a roubar o brinquedo a um bebé. Digo apenas: até provar que as fadas e os unicórnios não existem, eu acredito neles.
O programa foi seguindo com esta conversa vaga e puritana até que interveio um dos convidados da plateia. Em apenas alguns minutos (os poucos a que teve direito) este individuo debateu mais que o artista ateu no programa inteiro. Levou todos os representantes religiosos a unirem-se contra ele e a atacar o seu conhecimento e sinceridade em vez de responderem directamente às suas questões. Quem era este individuo? Carlos Esperança, presidente da direcção da Associação Ateísta Portuguesa (AAP).
Portanto, vamos ver se eu entendi bem. Temos em Portugal uma associação de ateus cuja função de existência é debater estas questões e o seu presidente está disposto a vir falar ao programa, mas em vez de lhe dar um lugar à mesa para que possa verdadeiramente expor a posição ateia, dão-lhe apenas cinco minutos para falar e no seu lugar convidam um artista plástico que por acaso é ateu?! Eu não tenha nada contra o senhor Pedro Cabrita Reis que me pareceu um grande intelectual bem intencionado, mas esta situação seria semelhante a em vez de dar lugar à mesa ao Padre, dá-lo a um individuo que por acaso ao domingo vai à missa. É de uma incoerência que classificaria de amador se não desconfiasse dos motivos por que ocorreu.
O senhor Carlos Esperança colocou em cima da mesa aquilo que realmente se devia estar a debater. O público não está interessado em filosofias sobre a natureza do transcendeste humano nem precisa que lhes ensinem a ter fé, isso é com cada um. O que motivou este debate para começar foi o momento conturbado que vivemos com ameaças de grupos religiosos extremistas como o ISIS e debates inter-religiosos como o que ocorreu recentemente na Turquia. Teria sido muito mais útil discutir a real utilidade da religião, ou do conceito de Deus, no mundo actual e como combater os grupos que fazem uma interpretação perigosa dos livros sagrados. Como Esperança apontou, a religião não devia ter esta presunção altiva de superioridade e de que é apenas a busca pelo divino e pelo transcendente quando é responsável por muitas das guerras que se travaram e continuam a travar nos dias de hoje.
Mas quando ele disse ao senhor Sheikh que negar a ligação do Estado Islâmico ao islamismo é como negar a ligação do catolicismo à inquisição, ficou "o caldo entornado". A partir daí os representantes deixaram de querer saber o que ele tinha a dizer e preocuparam-se em mandá-lo ler os livros sagrados que, apesar de ele ter afirmado repetidamente que tinha lido, o preferiram considerar dogmático ou defender a religião da "contra religião".
Basicamente o que eles quiseram dizer é isto: "Se o senhor leu os livros e ficou com uma opinião desfavorável da minha religião, vá lê-los outra vez até ter uma opinião favorável, depois falamos."
É natural que os senhores que ali foram representar a suas religiões só concordaram em fazê-lo se o seu "adversário" fosse uma versão "soft" de ateu. Daqueles que tem medo de dizer algo que possa ser considerado ofensivo e que gosta de se perder em debates filosóficos em vez de tratar o que é factual: a religião é hoje um problema e não uma solução.
Cá em Portugal estão muito mal habituados a ver as suas crenças desafiadas. O que fariam num debate com Richard Dawkins, Daniel Denett ou o falecido Christopher Hitchens?
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