segunda-feira, 23 de março de 2020

Sobre o Papa Francisco

O Papa Francisco tem gozado nestes seus anos de pontificado de uma popularidade e imagem que o colocaram como figura acarinhada por um vasto espectro político, religioso e social. Pessoalmente, como ateu, não tenho muito interesse pela figura máxima da igreja católica; mas o facto de nunca ter escrito nada sobre o Santo-padre neste blog, desde logo dá a entender que não tenho uma forte opinião sobre a personagem. No geral, é-me indiferente: nem o considero um santo em pessoa (como muitos), nem o acho maldoso ou malevolamente retrógrado (especialmente comparado ao seu antecessor).

Saúdo a sua politica de justiça económica no Vaticano, e o facto de não negar factos científicos como são a evolução das espécies e o aquecimento global. Neste mundo louco em que vivemos, isso já é alguma coisa. Em termos de imagem, parece muito mais progressista que Bento XVI, mas também, convenhamos, não era difícil. Julgo, no entanto, que estes aspectos lhe conferiram um "efeito auréola" que não se justifica. Ou seja, ele é, de facto, melhor Papa que o anterior do ponto-de-vista da imagem da igreja, mas não é tão progressivo como a maioria das pessoas acham que é, pois mantém a grande maioria das doutrinas religiosas, incluindo as homofóbicas e misóginas. Na maior parte dos pontos, é conservador.

Isto é o que eu não gosto de Francisco:

Como todos os antecessores, é contra o casamento gay (classificando os homossexuais como "fardos sociais"* e apelando-lhes que se vão confessar), o aborto e a contracepção. Quando afirmou que "a igreja não se devia obcecar com a sexualidade", houve a esperança momentânea que talvez estivesse a mudar a posição da igreja em relação aos direitos da comunidade LGBT, mas rapidamente esclareceu que na verdade só queria dizer que a igreja tem "assuntos mais importantes com que se preocupar". 

Na sua visita às Filipinas afirmou que os "bons católicos não têm de procriar como coelhos". Isto vindo de um homem que é contra o uso de preservativo em países onde o número de DST's é elevado, em que ter mais de dois filhos é normal, pois são necessários para contribuir com o sustento das famílias e porque muitos não chegam à idade adulta (no caso africano); apelar à abstinência (que para ele seria a única forma moral de não procriar) é aberrante e demonstra não ter noção dos dilemas sociais porque estas comunidades passam.

É um crente e defensor dos exorcismos. Não que eu considere tal problemático já que não é real, apenas uma fantasia propagada pelos séculos ao estilo de bruxaria, mas não aprecio este tipo de crenças em pessoas poderosas em pleno século XXI.

Para mim, o episódio que mais me marcou (e desmascarou) de Francisco foram as suas declarações no seguimento dos atentados do Charlie Hebdo, onde, em vez de condenar os agressores disse, e cito:

"Se o meu bom amigo Dr. Gasparri (que seguia com ele) chamar nomes à minha mãe, ele pode esperar um murro. É normal. Não se pode provocar. Não se pode insultar a fé dos outros. Não se pode gozar com a fé dos outros. Há tantas pessoas que falam mal da religião ou de outras religiões, que gozam com elas, que fazem disso um jogo. São provocadores. E o que lhes acontece é o mesmo que aconteceria ao Dr. Gasparri se ele chamar nomes à minha mãe. Há um limite."

Aqui temos o máximo líder religioso do mundo ocidental a defender a violência física contra palavras de que não se goste. É aberrante. Eu defendo a liberdade de expressão de se dizer TUDO o que se queira. Se não gostamos, ignora-se, ou, se acharmos que vale o esforço, deixamos o tribunal decidir. Em democracia deveria ser assim. Não vamos desatar a atacar quem escreve sátiras ou quem faz cartoons. Se queremos viver numa sociedade global e multi-cultural, não pode haver limites à liberdade de expressão porque a partir do momento em que começamos a censurar, nunca pararemos pois não há nada que digamos que não possa ser considerado ofensivo por alguém.
Eu sei que se pode citar a Bíblia para defender posições opostas conforme dê jeito, mas esperaria que por esta altura do nosso progresso civilizacional a igreja já tivesse mentalizada para a apontar Jesus e "dar a outra face". Oferecer violência tem um cheiro a obscurantismo muito desagradável.

Para citar o falecido Christopher Hitchens: "Se estivermos a discutir e tu disseres que eu te ofendi, ainda estou à espera de ver a onde queres chegar." 


*Nota: considero particularmente irónico o Papa designar os homossexuais como "fardos sociais" visto que, independentemente da orientação sexual, são cidadãos, pelo que, em principio, trabalham e pagam impostos como toda a gente. Já o Papa é o líder de uma instituição que não só não produz riqueza, como recebe donativos do Estado e privados, e ainda tem isenções fiscais. Quem será o maior fardo social?