Recentemente, numa das muitas visitas que costumo fazer à loja Fnac e em particular à zona de livraria, deparei-me com um tipo de livro que aparentemente está bastante na moda (se bem que já existam há bastante tempo). Na secção "Espiritualidades" (que ironicamente fica mesmo ao lado da secção de "Divulgação Cientifica") há uma série de livros sobre pessoas que estiveram às portas da morte mas sobreviveram e quando voltaram tinham histórias extraordinárias de visões angelicais. Tinham falado com Jesus, familiares já falecidos, Deus, o Diabo, e por vezes o seu espírito até tinha deixado o corpo físico, ao ponto de o poder ver de frente, geralmente deitado numa maca com os médicos à sua volta, e claro nunca esquecendo, a famosa luz ao fundo do túnel.
Para essas pessoas, estes acontecimentos representam a prova irrefutável de que a vida depois da morte é real, que as figuras religiosas também são reais e este livro é uma tentativa de dar as boas notícias às pessoas que não tiveram a "sorte" de ter experienciado esse acontecimento.
Ora bem, não estou aqui para afirmar liminarmente que tudo isso é falso e que a vida depois da morte não existe (ninguém pode ter a certeza absoluta, eu pessoalmente não fico convencido nem por um instante) mas apenas para chamar a atenção para alguns problemas que estas histórias apresentam.
Em primeiro lugar o mais óbvio: se uma pessoa tiver uma experiência deste género (como com todas as experiências pessoais) pode estar plenamente justificada em acreditar no que viu, mas obviamente não pode esperar que todas as outras pessoas que nunca tiveram a experiência também acreditem uma vez que não são apresentadas provas. Se aceitássemos o que todos dizem sem requerer provas, seriamos forçados a acreditar em tudo (já houve quem afirmasse que viajou no cometa Halley por exemplo). No caso concreto destas experiências extracorporais, como geralmente têm um forte teor religioso, mais facilmente as pessoas se "esforçam" por acreditar já que querem que isso seja verdade mas já lá vamos a essa parte.
Vou agora citar o neurofisiólogo Kevin Nelson, que deu uma entrevista sobre este assunto, e que pode ser lida na edição de Janeiro 2013 da revista "Super Interessante". Vou saltar a parte em que ele fala sobre a fase REM (movimentos oculares rápidos) e fase não-REM enquanto dormimos que afectam os nossos sonhos, pois isso iria complicar e prolongar demasiado este meu texto.
Ele fala de que quando o corpo está à beira da morte, como quando se sofre um enfarte por exemplo, "a tensão arterial diminui de forma radical e, com ela, a irrigação do cérebro, que se sente ameaçado. Uma das suas reacções é activar a fase REM quando o doente está acordado, embora esteja de olhos fechados. Quando isso acontece, desliga-se a área parietotemporal, aquela que permite a orientação no espaço. E este apagão provoca experiências extracorporais."
Dá como exemplo um investigador suíço (chamado Olaf Blanke) que "conseguiu que uma mulher acreditasse estar a flutuar fora do corpo, e que voltava a integrá-lo quando se estimulava essa zona com diminutos eléctrodos. Era como ligar e desligar um interruptor. Trata-se de uma ilusão, mas de uma ilusão extremamente poderosa."
A clássica visão da "luz ao fundo do túnel" também se explica com a falta de oxigénio: "Como o nervo óptico não recebe sangue suficiente, o olho é afectado e perde visão periférica."
Outro caso curioso: não existe um único caso, capaz de resistir ao escrutínio, de pessoas que nasceram cegas e que descrevam pormenores de uma experiência à beira da morte.
Também há quem afirme que teve as experiências depois de estar clinicamente morto. Será que pode acontecer? Nelson: "Claro que não. As pessoas confundem a morte clínica com uma paragem cardíaca. Contudo, a lesão cerebral só surge 30 minutos depois de uma redução de 90% do fluxo sanguíneo."
E no que concerne a vida depois da morte, estas experiências confirmam-na?
"Não se pode deduzir que as experiências extracorporais provam que a alma se mantém viva depois da morte. Aqueles que o afirmam estão a utilizar pseudociência para criar falsas esperanças." (e acrescento eu, para escrever um livro e ganhar bom dinheiro)
Finalmente, um questão incontornável: aquilo que alguém vê nas experiências à beira da morte é fruto e directamente influenciado pela própria cultura.
"Há quem afirme ter tido um encontro com Elvis Presley. Estou certo de que um habitante das florestas da Papua-Nova Guiné vê outro tipo de pessoas."
É perfeitamente natural que um cristão veja Jesus, um muçulmano veja Maomé ou um budista veja Buda. Só poderia haver conclusões a tirar sobre a veracidade destas figuras se alguém que nunca tivesse tido contacto ou conhecimento delas as relatasse. Até porque não podem ser todas verdadeiras. Mas isso nunca aconteceu.
Portanto, o que será mais plausível: que uma entidade sobrenatural como Jesus ou Deus ou Alá ou Shiva se revele apenas a algumas pessoas, que já acreditavam em si mesmo antes de estarem à beira da morte, ignorando completamente os milhões de pessoas que acreditam noutras coisas, e fá-lo num momento em que a pessoa está com falta de oxigénio no cérebro, o que lhe afecta enormemente a capacidade de percepcionar o mundo e de tal maneira que essa pessoa, sobrevivendo, nunca poderá provar que essa entidade lhe falou até porque outras pessoas dizem ter falado com outras entidades diferentes. Ou simplesmente que o cérebro (o orgão mais poderoso e complexo não só do nosso corpo mas da natureza) duma pessoa à beira da morte lhe provocou uma ilusão por não estar a trabalhar bem?
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