quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Um episódio de investimento religioso...

Excerto da obra Avareza de Emiliano Fittipaldi de um dos muitos episódios chocantes de corrupção perpetrados pela Igreja Católica com dinheiros públicos (pp. 247-249): 

"Em 2001 decidem (a cúria de Salerno) que chegou o momento de restaurar edifícios ruinosos e velhas estruturas desabitadas e participam num concurso regional. Um acordo com o qual o Estado italiano financiava com dinheiros públicos obras «para a promoção da oferta social nas áreas degradadas, a melhoria da qualidade urbana ou a recuperação e requalificação do património histórico cultural.»
O monsenhor Pierro escreve na demanda que o beneficiário dos trabalhos seria «toda a colectividade» e pede 2,3 milhões de euros. A Região acredita no projecto dos padres e fornece o dinheiro. (...) 2008, quando os técnicos vão controlar o estado da obra da Aldeia da Criança, para os meninos pobres, nem acreditam no que vêem: «a diocese», escreveram num relatório técnico, «em vez da prevista estrutura ao serviço da colectividade, realizou uma estrutura hoteleira.»
(...) a igreja, de entre os oitenta participantes no concurso, «foi a única que se moveu numa dimensão estritamente privada.» (...) «de maneira irrefutável o uso de expressões ambivalentes tendentes a omitir a real finalidade, como o termo "acolhimento" que, referido à "colónia", dava a entender acolhimento caritativo e esboçava uma obra destinada ao serviço social, além do facto de nenhum acto ou documento da diocese alguma vez fazer referência ao verdadeiro destino da obra.»
O monsenhor Pierro, segundo o tribunal, estava «bem consciente da ambiguidade lexical» utilizada para enganar os técnicos regionais que atribuíram o dinheiro...
(...)
Não obstante o escândalo, o ex-arcebispo permaneceu no cargo até à reforma. (...) Em 2010 alguém ergueu uma estátua de quatro metros de altura figurando o próprio Pierro no jardim do seminário. «Ao monsenhor Gerardo Pierro, arcebispo, ao cumprir-se o seu 75.º aniversário com viva gratidão, a arquidiocese erigiu.»

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Astrologia: antiga oposição

A astrologia é uma tendência com séculos, ou, se considerarmos apenas a noção dos astros terem influência na vida das pessoas (e não me refiro, obviamente, à energia solar ou à força gravitacional da Lua) terá mesmo milénios. 
Com o incrível avançar da ciência e tecnologia ao longo dos últimos 500 anos a nossa compreensão de como o mundo funciona alterou-se profundamente. E, ainda assim, os defensores da astrologia aí estão, aparentemente não muito enfraquecidos, e para ficar. Poderia considerar-se natural que o actual cepticismo científico em relação à astrologia fosse uma resposta da modernidade às crenças ultrapassadas da idade média. Mas a verdade é que sempre houve cépticos, até quando a ciência não fornecia as tão ansiadas respostas que a astrologia parecia dar. 
É verdade tratar-se de uma personagem fictícia de uma peça, mas a maneira como Edmund da obra Rei Lear (1605) de William Shakespeare ataca a astrologia denota uma argumentação madura e racional que, com certeza, teria encontrado paralelo no mundo real do tempo de Shakespeare: 

"É esta a esplêndida loucura do mundo: quando sofremos as consequências dos nossos excessos, atribuímos a culpa ao Sol, à Lua, às estrelas, como se os astros fossem responsáveis pelas nossas loucuras; como se os céus nos obrigassem a sermos patifes, ladrões e traidores; como se a conjunção dos planetas fizesse de nós bêbedos, mentirosos e adúlteros; como se todos os males que sobre nós se abatem fossem uma maldição dos deuses. Que estupenda evasão, acusar as estrelas dos nossos costumes dissolutos! Fui concebido sob a cauda do Dragão e vim ao mundo sob a Ursa Maior, sou portanto violento e devasso! Que absurdo! Teria sido o que sou mesmo que a estrela mais benfazeja tivesse brilhado no firmamento no momento da minha concepção."

- William Shakespeare, "Rei Lear" (1605), Acto 1, Cena 2. Publicações Europa-América (2002), tradução de Margarida Prates