domingo, 15 de outubro de 2017

Imagem de Portugal (des)actualizada?

Excerto da carta intitulada "O Brasil e Portugal" de Eça de Queiroz, publicada no Jornal do Porto para onde escreveu as suas Cartas de Inglaterra a partir de 1877, quando exerceu o papel de cônsul. Aqui se dá a imagem que os europeus e, mais concretamente os ingleses, tinham de Portugal no século XIX: 

"Com efeito, o juízo que, de Badajoz para cá, se faz de Portugal, não nos é favorável, nós sabemo-lo bem - e não nos inquietamos! Não falo aqui de Portugal como Estado político. Sob esse aspecto gozamos uma razoável veneração. Com efeito, nós não trazemos à Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem suficiente: a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos financeiros. 
Somos o que se pode dizer um povo de bem, um povo boa pessoa. E a nação vista de fora e de longe, tem aquele ar honesto de uma pacata casa de província, silenciosa e caiada, onde se pressente uma família comedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com as economias dentro de uma meia... 
A Europa reconhece isto; e todavia olha para nós com um desdém manifesto. Porquê? Porque nos considera uma nação de medíocres; digamos francamente a dura palavra: porque nos considera uma raça de estúpidos. Este mesmo Times, este oráculo, augusto, já escreveu que Portugal era, intelectualmente, tão caduco, tão casmurro, tão fóssil, que se tornara um país bom para se lhe passar muito ao largo e atirar-lhe pedras."    

Eça de Queirós, Cartas de Inglaterra, Publicações Europa-América, pp. 115.  

sábado, 30 de setembro de 2017

Condenação de Descartes

Excertos da introdução à obra Discurso do Método (1637) de René Descartes (Porto Editora, trad. e org. de Tavares Guimarães)

"Descartes afirma-se crente, cristão, católico, «conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância». Diz também, «Reverenciava a nossa teologia e desejava, como qualquer outro, ganhar o céu, mas, tendo aprendido como coisa certíssima que o caminho do céu não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria sujeitá-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender com êxito o seu exame, era precisa alguma assistência extraordinária do céu e ser mais do que homem».   

Descartes nunca quis, pois, «ser mais do que homem», e nunca recebeu, a seu ver claro e distinto, «alguma assistência extraordinária do céu», o qual pode ser ganho sem nada se saber de teologia, donde a clara inutilidade desta. Por esta sua atitude de espírito, compreende-se que o seu contemporâneo Blaise Pascal (1623-1662), grande pensador, mas homem religiosíssimo, adepto do jansenismo, tenha dito que, em perspectiva religiosa da existência, Descartes era «inútil e incerto», conclusão do seu pensamento anterior, que passamos a transcrever: «Não posso perdoar a Descartes. Ele bem desejaria, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus, mas não pôde evitar pô-lo a dar um impulso inicial, para pôr o mundo em movimento. Depois do que, Deus já não interessa para mais nada.» 
(...)
Nada no Discurso do Método (e nas restantes obras de Descartes) se encontra que vá contra o catolicismo, tanto no campo do dogma, como no da moral, nada que vá contra a ortodoxia eclesiástica vigente no seu tempo, mas, por decreto de 20 de Novembro de 1663, treze anos após a sua morte, as suas obras filosóficas foram condenadas, postas oficialmente no INDEX librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) com esta observação absurda «Donec Corrig», isto é, «até que sejam corrigidos» ou - o que é o mesmo - «enquanto não forem corrigidos». 
Dissemos absurda, porquanto, além de não ser dito o que devia ser corrigido, o autor (e só ele faria as correcções, se visse que as devia fazer) já nada podia corrigir, por estar morto. 
Porque foi, então, condenado eclesiasticamente por Roma o "inocente" Descartes? Simplesmente, por a sua filosofia ser considerada "revolucionária", muito perigosa por conter sementes de possíveis "heresias", por, com o seu individualismo e racionalismo, marginalizar a cultura filosófica tradicional e oficial, suporte da religião cristã-católica." (pp. 50-51) 

Nota: A congregação do INDEX, fundada em 1543, foi suprimida em 1966, aquando do Concílio Ecuménico do Vaticano II, nos pontificados de João XXIII e Paulo VI. 


"Não se pode deixar de notar que a existência de Deus é, segundo Descartes, a certeza em que se fundamentam todas as outras certezas. Fácil é de ver que, negada essa certeza, rui o sistema cartesiano, tal como Descartes o engendrou." (Quarta parte, nota 34, pp. 93-94)


Nota própria: Descartes era católico e professava activamente a sua religião, mas nas suas incursões filosóficas dava rédea solta à lógica e ao raciocínio, nunca tendo, no entanto, em momento algum, posto em causa os ensinamentos católicos. Era simplesmente um homem que, não obstante a sua fé, se dava a liberdade de pensar. Mas até essa limitada liberdade se mostrou incómoda para os seus mais fervorosos contemporâneos, como é o caso de Pascal. Pode considerar-se com sorte por não ter sido julgado em vida, o que não impediu o Vaticano de proibir as suas obras filosóficas depois da sua morte. Não por conterem heresias mas por serem inovadoras e revolucionárias no seu campo.
E há quem diga, hoje, que a igreja foi no passado um motor de inovação! Talvez existam exemplos, mas, como fica demonstrado, também os há em que serviu de travão.  

Células estaminais embrionárias

Excerto de O Fim da Fé de Sam Harris a propósito da pesquisa de células estaminais (pp.183-184):

"Sabemos que se pode aprender muito com a investigação das células estaminais embrionárias. (...) Isto permitiria sem dúvida lançar uma nova luz sobre algumas situações clínicas, como o cancro e os defeitos de nascença (...). Sabemos ainda que a investigação das células embrionárias requer a destruição de embriões humanos na fase em que este é constituído por 150 células. Não temos a mais pequena razão para acreditar, no entanto, que tais embriões tenham a capacidade de sentir a dor, sofrer, ou aperceber-se da perda de vida seja de que maneira for. O que é indiscutível é que existem milhões de seres humanos que têm, efectivamente, tais capacidades, e que sofrem frequentemente de lesões traumáticas no cérebro e na espinal medula. Outros milhões que padecem das doenças de Parkinson e de Alzheimer. (...) Sabemos que as células estaminais embrionárias prometem ser uma fonte renovável de tecidos e de órgãos que pode aliviar consideravelmente estas formas de sofrimento num futuro não muito distante. 
(...) vivemos hoje num mundo em que políticos com formação universitária colocam entraves a tais investigações porque estão preocupados com o destino de células individuais. A sua preocupação não é apenas que um conjunto de 150 células possa sofrer a sua própria destruição. Mais do que isso, acreditam que mesmo um zigoto humano deveria ser objecto de todas as protecções devidas a um cidadão plenamente desenvolvido. Todavia, perante os avanços recentes na biologia da clonagem, o mesmo se poderia dizer de todas as células do corpo humano. A julgar pelo potencial de uma célula, de cada vez que o presidente coça o nariz incorre numa eliminação diabólica de células. 
(...) Em termos neurológicos, decerto que provocamos mais sofrimento neste mundo por matarmos uma mosca do que por matarmos um blastocisto, para já não falar de um zigoto (afinal, as moscas, só no cérebro, têm cem mil células). Claro que o ponto em que adquirimos a nossa humanidade e a nossa capacidade para sofrer permanece uma questão em aberto. Mas qualquer pessoa que insista dogmaticamente dizendo que a emergência de tais características deve coincidir com o momento da concepção não contribui em nada para este debate, a não ser com a sua própria ignorância."     

terça-feira, 11 de abril de 2017

Compartimentos mentais

Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) foi um profícuo escritor do final do século XIX e início do século XX. De toda a sua obra há um nome que sobressai e que ficará para sempre na memória popular e literária: Sherlock Holmes. Mas não é sobre isso que me vou aqui debruçar. Seria de esperar que o criador do mais famoso detective do mundo fosse alguém com um espírito céptico, de raciocínio dedutivo e apenas aberto a provas concretas e irrefutáveis.
Mas a verdade é que na sua vida pessoal Conan Doyle foi um dos maiores e mais crédulos defensores do espiritualismo de que há memória.
Homem muito activo, entregou-se a diversas causas ao longo da vida, muitas das quais louváveis. Mas nos seus últimos anos, as suas campanhas internacionais, altamente publicitadas, pelo movimento espiritualista, trouxeram-lhe alguma ridicularidade. Foi-lhe mesmo atribuída a alcunha de "São Paulo do Espiritualismo". Neste assunto o criador de Holmes mostrou-se paradoxalmente ingénuo. Estava convencido, por exemplo, da existência das fadas fotografadas em Gottingley em 1917 mesmo depois das duas raparigas envolvidas no truque terem admitido que eram apenas recortes. 
Conan Doyle afirmou inclusive que alguns dos truques de Harry Houdini, o famoso ilusionista e escapista americano deviam o seu sucesso a forças sobrenaturais apesar de Houdini (que considerava os videntes fraudes) ter insistido que não era o caso. Para além disso, Doyle afirmou que o espírito do falecido Joseph Conrad o tinha convidado para terminar o romance inacabado Suspence. Isto foi curiosamente irónico, já que Conrad, num dos seus prefácios, tinha declarado "o mero sobrenatural" como sendo "um artigo manufacturado, o fabrico de mentes insensíveis, um ultraje à nossa dignidade." 
Um dos contos de Doyle, The Land of Mist (1926), procura convencer o leitor da existência de espíritos partindo de uma posição céptica, usando a personagem do Professor Challenger. 
Tudo isto para dizer o quê? Em minha opinião é fascinante a capacidade do nosso cérebro em compartimentalizar ideias aparentemente contrárias, uma espécie de duplo-pensar à boa maneira Orwelliana. Como quando um geólogo cuja profissão é estudar rochas com centenas de milhões de anos consegue afirmar ao domingo que acredita que o planeta Terra tem uns meros seis mil anos. Leva-me a questionar se estas pessoas simplesmente mentem sobre aquilo em que acreditam conforme a situação o justifique, ou se quando surge uma contradição o seu cérebro simplesmente bloqueia a questão para que não tenham de pensar, quase como um mecanismo de defesa.
Outra hipótese é a apresentada por Michael Shermer (psicólogo, autor e editor-chefe da revista Skeptic): quando alguém se compromete com uma crença, quanto mais inteligente for, melhor será a racionalizar essa crença. Daí pessoas inteligentes acreditarem em coisas estranhas, porque são eficazes a defender crenças às quais chegaram por razões não-inteligentes.  
Isto fascina-me porque, tanto quanto consigo entender-me a mim próprio, eu não escolho aquilo em que acredito mesmo que pudesse obter proveito nisso. Claro que posso mentir ás outras pessoas, mas não à minha própria consciência. Talvez o Natal fosse mais interessante se eu ainda acreditasse no Pai Natal, mas não consigo. Passar-se-à o mesmo com as outras pessoas ou sou eu que sou esquisito?       

Argumentos Religiosos: Evolução é teoria

Recentemente fui interpelado por duas testemunhas de Jeová a caminho de casa. À minha aproximação, a porta-voz abeirou-se e afirmou, quase de forma acusatória, "sabia que a evolução é uma invenção dos cientistas? É só uma teoria!" Naquele dia em particular optei simplesmente por dizer que não concordava mas estava demasiado ocupado para ficar ali a falar. Ainda assim, fiquei a pensar o ilógico que é aquela abordagem para tentar converter alguém e que só demonstra que estas pessoas não tiveram formação sobre o assunto, mas simplesmente doutrinação.    
Quando religiosos aplicam a palavra "teoria" ao conceito de evolução, estão a fazê-lo referindo-se ao uso corrente da palavra, quase como sinónimo de opinião. O seu objectivo é claro: dar a entender que a teoria da evolução natural é apenas uma opinião dos cientistas, e assim, subjectiva e abdicável. 
Esta táctica é muitas vezes usada de forma premeditada, mas pode também surgir de uma ignorância genuína. 
Em ciência "teoria" não designa uma mera opinião. Embora, diga-se que se fosse, preferiria acreditar na opinião de alguém com experiência na área que dedica a sua vida a estudar o assunto do que em alguém que se limita a obter toda a "sabedoria" de um livro escrito há mais de mil anos por autores anónimos do médio oriente. 
No conceito científico, uma teoria é um modelo que procura explicar os factos observados*. Neste caso, o facto observado é a evolução. Sabemos que ela ocorre porque podemos observá-la. É a pedra basilar de toda a biologia. A medicina e a industria farmacêutica não funcionariam sem ela. Porque temos constantemente de criar novas vacinas para a gripe? Porque o vírus evolui, caso contrário bastaria uma. Muitas vezes, quando confrontados com esta evidência, os religiosos evocam a micro e macro evolução. Para eles, as mutações de vírus são micro evolução, e não a negam, e a transição entre espécies que não se consegue observar pelo facto óbvio de levar milhares ou milhões de anos, é macro evolução, que negam. Estes são dois termos inventados pelos religiosos que não são tidos em conta pelos biólogos, por um motivo muito simples: são a mesma coisa. O processo físico-químico que leva um vírus a mudar a sua constituição e o processo que leva um dinossauro a tornar-se uma galinha é o mesmo, a única diferença é a escala temporal. Seria como dizer que se acredita que o nascimento do primeiro dente de um bebé constitui um micro envelhecimento e negar o macro envelhecimento de que aquele bebé será um dia um adulto.
Portanto, a evolução é um facto, tão demonstrável como a Terra girar em torno do Sol (que curiosamente a igreja também negou durante muito tempo como se sabe). A teoria a que nos referimos é a que procura explicar como a evolução ocorre. A resposta é a selecção natural, apresentada por Darwin na obra "A Origem das Espécies" em 1859. Não se trata de uma opinião, nem de um dogma inquestionável, é simplesmente o modelo que melhor se adequa e explica o fenómeno observado. Desde Darwin, a teoria foi testada incontáveis vezes, melhorada, e revista; e ao longo de 150 anos, resistiu ao escrutínio, não porque quem a defende tenha interesses ou doutrinas que queira propagar, mas porque a teoria se mostrou adequada. Não quer isto dizer que não possa algum dia vir a ser desmentida ou alterada, mas para já representa a melhor forma que temos de entender o fenómeno da evolução.   
Aqui reside a principal diferença entre a ciência e a religião: a ciência admite sempre que pode estar errada, bastando para isso que surjam provas, a religião pensa já ter as respostas e que não pode estar errada, com ou sem provas. (Este contraste ficou imortalizado no debate entre Bill Nye e Ken Ham) 
O facto dos religiosos atacarem uma teoria cientifica denota bem a sua escassez de argumentos a favor da sua doutrina: mesmo que fosse provado hoje mesmo que a evolução não ocorre e que a ciência está toda errada, isso não levaria uma pessoa racional e intelectualmente honesta, a aproximar-se da crença em Deus nem um milímetro. Porque uma não implica a outra. Não implica um criador sobre-natural, e muito menos um Deus pessoal como o da Bíblia.  
É compreensível a razão dos religiosos se preocuparem tanto com a evolução. Ela consegue, por si só, refutar todo o cristianismo. Isto porque na base do mesmo, está a ideia de Deus ter criado Adão e Eva, estes terem pecado, e Jesus ter morrido na cruz para pagar por esses pecados. Se se aceitar a evolução, o ser humano evoluiu de espécies anteriores ao longo de milhões de anos, logo, não houve Adão e Eva, logo não houve pecado original, logo Jesus é desnecessário ou irrelevante.                   

*Nota: "Em linguagem comum, muitas vezes o termo «teoria» significa hipótese. Cientificamente, o termo «teoria» é específico e utiliza-se para designar o processo de construção de estruturas conceptuais formais em ciência. Assim, as teorias são estruturas compostas por leis e pelas regras segundo as quais essas leis se juntam." (C. Coelho Ferreira & N. Neves Simões. A Evolução do Pensamento Geográfico (1986). Gradiva p.18)