Excertos da introdução à obra Discurso do Método (1637) de René Descartes (Porto Editora, trad. e org. de Tavares Guimarães):
"Descartes afirma-se crente, cristão, católico, «conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância». Diz também, «Reverenciava a nossa teologia e desejava, como qualquer outro, ganhar o céu, mas, tendo aprendido como coisa certíssima que o caminho do céu não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria sujeitá-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender com êxito o seu exame, era precisa alguma assistência extraordinária do céu e ser mais do que homem».
Descartes nunca quis, pois, «ser mais do que homem», e nunca recebeu, a seu ver claro e distinto, «alguma assistência extraordinária do céu», o qual pode ser ganho sem nada se saber de teologia, donde a clara inutilidade desta. Por esta sua atitude de espírito, compreende-se que o seu contemporâneo Blaise Pascal (1623-1662), grande pensador, mas homem religiosíssimo, adepto do jansenismo, tenha dito que, em perspectiva religiosa da existência, Descartes era «inútil e incerto», conclusão do seu pensamento anterior, que passamos a transcrever: «Não posso perdoar a Descartes. Ele bem desejaria, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus, mas não pôde evitar pô-lo a dar um impulso inicial, para pôr o mundo em movimento. Depois do que, Deus já não interessa para mais nada.»
(...)
Nada no Discurso do Método (e nas restantes obras de Descartes) se encontra que vá contra o catolicismo, tanto no campo do dogma, como no da moral, nada que vá contra a ortodoxia eclesiástica vigente no seu tempo, mas, por decreto de 20 de Novembro de 1663, treze anos após a sua morte, as suas obras filosóficas foram condenadas, postas oficialmente no INDEX librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) com esta observação absurda «Donec Corrig», isto é, «até que sejam corrigidos» ou - o que é o mesmo - «enquanto não forem corrigidos».
Dissemos absurda, porquanto, além de não ser dito o que devia ser corrigido, o autor (e só ele faria as correcções, se visse que as devia fazer) já nada podia corrigir, por estar morto.
Porque foi, então, condenado eclesiasticamente por Roma o "inocente" Descartes? Simplesmente, por a sua filosofia ser considerada "revolucionária", muito perigosa por conter sementes de possíveis "heresias", por, com o seu individualismo e racionalismo, marginalizar a cultura filosófica tradicional e oficial, suporte da religião cristã-católica." (pp. 50-51)
Nota: A congregação do INDEX, fundada em 1543, foi suprimida em 1966, aquando do Concílio Ecuménico do Vaticano II, nos pontificados de João XXIII e Paulo VI.
"Não se pode deixar de notar que a existência de Deus é, segundo Descartes, a certeza em que se fundamentam todas as outras certezas. Fácil é de ver que, negada essa certeza, rui o sistema cartesiano, tal como Descartes o engendrou." (Quarta parte, nota 34, pp. 93-94)
Nota própria: Descartes era católico e professava activamente a sua religião, mas nas suas incursões filosóficas dava rédea solta à lógica e ao raciocínio, nunca tendo, no entanto, em momento algum, posto em causa os ensinamentos católicos. Era simplesmente um homem que, não obstante a sua fé, se dava a liberdade de pensar. Mas até essa limitada liberdade se mostrou incómoda para os seus mais fervorosos contemporâneos, como é o caso de Pascal. Pode considerar-se com sorte por não ter sido julgado em vida, o que não impediu o Vaticano de proibir as suas obras filosóficas depois da sua morte. Não por conterem heresias mas por serem inovadoras e revolucionárias no seu campo.
E há quem diga, hoje, que a igreja foi no passado um motor de inovação! Talvez existam exemplos, mas, como fica demonstrado, também os há em que serviu de travão.
"Descartes afirma-se crente, cristão, católico, «conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância». Diz também, «Reverenciava a nossa teologia e desejava, como qualquer outro, ganhar o céu, mas, tendo aprendido como coisa certíssima que o caminho do céu não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria sujeitá-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender com êxito o seu exame, era precisa alguma assistência extraordinária do céu e ser mais do que homem».
Descartes nunca quis, pois, «ser mais do que homem», e nunca recebeu, a seu ver claro e distinto, «alguma assistência extraordinária do céu», o qual pode ser ganho sem nada se saber de teologia, donde a clara inutilidade desta. Por esta sua atitude de espírito, compreende-se que o seu contemporâneo Blaise Pascal (1623-1662), grande pensador, mas homem religiosíssimo, adepto do jansenismo, tenha dito que, em perspectiva religiosa da existência, Descartes era «inútil e incerto», conclusão do seu pensamento anterior, que passamos a transcrever: «Não posso perdoar a Descartes. Ele bem desejaria, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus, mas não pôde evitar pô-lo a dar um impulso inicial, para pôr o mundo em movimento. Depois do que, Deus já não interessa para mais nada.»
(...)
Nada no Discurso do Método (e nas restantes obras de Descartes) se encontra que vá contra o catolicismo, tanto no campo do dogma, como no da moral, nada que vá contra a ortodoxia eclesiástica vigente no seu tempo, mas, por decreto de 20 de Novembro de 1663, treze anos após a sua morte, as suas obras filosóficas foram condenadas, postas oficialmente no INDEX librorum prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) com esta observação absurda «Donec Corrig», isto é, «até que sejam corrigidos» ou - o que é o mesmo - «enquanto não forem corrigidos».
Dissemos absurda, porquanto, além de não ser dito o que devia ser corrigido, o autor (e só ele faria as correcções, se visse que as devia fazer) já nada podia corrigir, por estar morto.
Porque foi, então, condenado eclesiasticamente por Roma o "inocente" Descartes? Simplesmente, por a sua filosofia ser considerada "revolucionária", muito perigosa por conter sementes de possíveis "heresias", por, com o seu individualismo e racionalismo, marginalizar a cultura filosófica tradicional e oficial, suporte da religião cristã-católica." (pp. 50-51)
Nota: A congregação do INDEX, fundada em 1543, foi suprimida em 1966, aquando do Concílio Ecuménico do Vaticano II, nos pontificados de João XXIII e Paulo VI.
"Não se pode deixar de notar que a existência de Deus é, segundo Descartes, a certeza em que se fundamentam todas as outras certezas. Fácil é de ver que, negada essa certeza, rui o sistema cartesiano, tal como Descartes o engendrou." (Quarta parte, nota 34, pp. 93-94)
Nota própria: Descartes era católico e professava activamente a sua religião, mas nas suas incursões filosóficas dava rédea solta à lógica e ao raciocínio, nunca tendo, no entanto, em momento algum, posto em causa os ensinamentos católicos. Era simplesmente um homem que, não obstante a sua fé, se dava a liberdade de pensar. Mas até essa limitada liberdade se mostrou incómoda para os seus mais fervorosos contemporâneos, como é o caso de Pascal. Pode considerar-se com sorte por não ter sido julgado em vida, o que não impediu o Vaticano de proibir as suas obras filosóficas depois da sua morte. Não por conterem heresias mas por serem inovadoras e revolucionárias no seu campo.
E há quem diga, hoje, que a igreja foi no passado um motor de inovação! Talvez existam exemplos, mas, como fica demonstrado, também os há em que serviu de travão.
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