sábado, 10 de maio de 2014

A Praxe Académica

Hoje vou falar sobre um tema bastante badalado em Portugal nos últimos meses e sobre o qual eu tenho uma forte opinião: a praxe académica. Indo directo ao assunto, eu sou contra a praxe, não concordo que se realize e por mim não existia. Acho-a uma brincadeira completamente ridícula e em nada prestigiante quer para os alunos, quer para as instituições onde ocorrem. (Antes que passe uma imagem de intolerância, digo já que também sou, como explico mais à frente, contra a proibição da praxe. Aliás, não tenho problema nenhum com quem participa, participou ou apoia a praxe, simplesmente sou contra a sua existência da mesma maneira que sou contra a existência de programas como "Keeping up with the Kardashians". Sou contra mas não declaro guerra a quem apoia)  Dito isto, não vou entrar na parvoíce de "é tudo culpa da praxe" e de que é tudo uma seita e de que os trajados vão fazer bruxarias e sei lá que mais parvoíces as pessoas inventam. A larga maioria dos alunos que participam na praxe são pessoas responsáveis, tão aplicados como qualquer outro, e que não levam o ritual da praxe a níveis intoleráveis. Não são as pessoas que eu ponho em causa, mas sim o ritual em si. Para mim é um tema interessante e motivador para debate. E já agora, não vale a pena vir com o argumento que tantos aplausos arrancou do publico estudantil quando este tema foi debatido no Prós e Contras da RTP de que devia-mos era preocupar-nos com o estado do ensino superior em Portugal e não com estas brincadeiras. Que maneira tão óbvia de fugir ao debate! É claro que a praxe está longe ser um tema prioritário mas desde quando é que se só se pode discutir as prioridades? Se fosse assim, em Portugal ninguém discutia futebol nem literatura nem nada que não fosse de primeira urgência no país. Para mim todo o debate sobre temas que dividam opiniões é bem vindo, quanto mais não seja para que as pessoas fiquem a par dos argumentos a favor e contra. E por falar em argumentos, decidi adoptar o mesmo método que usei no meu texto sobre a pena de morte, ou seja, apresentar os argumentos mais populares usados para defender a praxe e a minha respectiva resposta.

    Argumentos a favor da praxe académica e respectivas respostas

A praxe é tradição e como tal deve ser preservada
A praxe académica em Portugal só é tradição (realmente antiga embora ao longo dos anos se tenha modificado várias vezes) em Coimbra. No resto do país simplesmente não tem tradição! A praxe como é encarada hoje começou a adquirir os contornos actuais nos anos de 1990 como forma de identidade das instituições com o massificar do ensino superior. Nessa altura começou a ser banal os jovens ingressarem na faculdade ao contrário do que acontecia em décadas anteriores em que só uma minoria, geralmente abastada, o fazia. Criou-se a necessidade de inventar tradições à pressa para voltar a tornar o ensino superior especial, e a praxe era o que estava mais à mão. É difícil este argumento da tradição pegar quando a praxe nem sequer existia quando os que estão agora a praxar nasceram. As pessoas que usam este argumento só demonstram que não se deram ao trabalho de investigar a história. E depois há outro aspecto: mesmo que fosse tradição, e depois? Como se a sociedade fosse obrigada a seguir tradições! Já foi tradição a execução pública de mulheres que se pensava serem bruxas queimando-as vivas em plena praça pública. Se não abdicássemos das tradições idiotas ainda viveríamos na idade das trevas.

A praxe integra os novos alunos
Isto é um dos argumentos mais ridículos. Colocar pessoas desconhecidas em situações socialmente constrangedoras e obrigá-las a conhecer-se pode integrar, mas é de longe uma das piores maneiras de o fazer. Qual é exactamente o argumento? Que os alunos não se integrariam se não houvesse praxe? Então como faziam antes da década de 90? E pelas universidades desse mundo fora onde a praxe não existe? Os alunos não interagem e não formam amizades uns com os outros nessas situações? Mesmo que a praxe integre jovens que acabam de chegar a um ambiente novo e onde estão fora da sua zona de conforto, fazê-lo recorrendo a uma humilhação colectiva consentida está errado por princípio. Ainda se os alunos mais veteranos os recebessem como iguais, apenas para mostrar os cantos à casa, mas não, os caloiros são ensinados a serem submissos perante os seus “superiores” e participarem em jogos degradantes, infantis e ridículos.     

A praxe é divertida
Se alguém disser que rebolar no chão, ficar completamente imundo por chafurdar na lama e ter ovos e farinha no cabelo, cantar obscenidades e auto-insultar-se é divertido, então das duas uma: ou eu tenho uma concepção de diversão muito estranha ou estou a falar com alguém que não está na plenitude das suas faculdades mentais. De facto, todas estas actividades, quando reivindicadas por alguém com estatuto superior, em qualquer outro contexto da sociedade poderiam ser classificadas como Bullying. Se são assim tão divertidas, porque razão os participantes só realizam estas actividades em contexto de praxe e nunca por si próprios a título pessoal? Se é apenas diversão, porque razão muitos dos caloiros ficam nervosos no seu primeiro dia na universidade, precisamente por saberem que vão ser praxados? Não quer dizer que não possa haver uma ou outra actividade que seja divertida (ou melhor ainda, útil como é o caso da praxe solidária) mas daí a dizer que a praxe, como um todo, é divertida é como tapar o sol com uma peneira. Será divertida, isso sim, para os veteranos, que tem rédea solta para exercitar os pequenos ditadores que têm dentro de si, mas para quem está a sofrer a praxe, a menos que seja masoquista, não pode ser divertido.        
Só é contra a praxe quem não foi praxado  
Esta afirmação é obviamente falsa. Já houve em Portugal, situações de alunos que processaram os seus amáveis colegas mais velhos por abusos durante a praxe, e muitos alunos desistem da praxe a meio, portanto esse argumento pode ser comprovadamente refutado. Mas qual é o propósito deste argumento? Uma pessoa só pode ter opinião sobre a praxe se tiver participado? Isso é como dizer que eu só posso achar que as drogas são más para o meu corpo se já tiver sido toxicodependente! É completamente ridículo. Possivelmente, o que este argumento quer insinuar, é que quem é praxado gosta da experiência. Pois tudo bem, até pode ter adorado, mas isso não faz da praxe menos ridícula! Lá porque alguém gosta de fazer actividades idiotas e por vezes perigosas (não vamos esquecer que já houve vítimas mortais), era só o que faltava a sociedade aplaudir e dizer “bem aquilo parece ser horrível, mas se há quem goste, então não posso ser contra.”

O que se vê nos documentários sobre a praxe não é praxe
Bem, então nesse caso o que chamamos às actividades degradantes exibidas nessas imagens? Segundo consta, nenhuma daquelas pessoas eram actores contratados para fingir que estavam a ser praxados, são imagens de alunos comuns e reais, filmados por várias instituições por esse país fora. Mesmo admitindo que aquilo não é assim em todas as universidades, não podem negar que o é em algumas. Mesmo admitindo que as reportagens apenas mostram a pior parte da praxe, não podem negar que é uma parte integrante dessa mesma praxe. Mesmo que a praxe tivesse uma “parte boa”, isso não compensaria a parte má. Isso seria como dizer que o nazismo até foi bom porque reduziu a taxa de inflação na Alemanha. É compreensível que os apologistas da praxe se queiram demarcar do que se vê nesses documentários porque até para o mais tresloucado defensor da praxe, aquelas imagens demonstram a barbaridade que a praxe verdadeiramente é. O seu único modo de defesa é dizer “ah mas quilo não é praxe”. Ai isso é que é, e eles sabem! Não dá é jeito admitirem ao país que é aquilo que os jovens vão fazer para a faculdade, geralmente com um enorme encargo financeiro para os pais e para o estado. Então, já que aquilo não é praxe, expliquem o que é a praxe verdadeira? Será os caloiros passearem de mão dada com os veteranos à beira mar?    

Ser praxado é bom porque depois o teu padrinho/madrinha podem ajudar-te
Muito bem, vou admitir que na maior parte das vezes, de facto, os padrinhos fornecem aos afilhados apontamentos, antigos exames e trabalhos, e duma maneira geral, quando são solicitados ajudam. Mas não é isso que seria de esperar numa comunidade estudantil? Digamos que temos um aluno A que foi praxado e pediu uns apontamentos ao seu padrinho. Temos outro aluno B que não foi praxado e como tal não tem padrinhos, mas como seria normal pede os apontamentos ao seu colega (do seu ano). Ora, é perfeitamente natural que este seu colega lhe empreste, portanto ter sido ou não praxado foi irrelevante, ambos receberam os apontamentos que queriam. Mas imaginemos que, por não ter sido praxado, o aluno A não empresta os apontamentos (ou o padrinho não permite que o seu afilhado empreste) ao aluno B. Sendo assim, temos um caso grave que é o seguinte: a praxe em vez de integrar como é, segundo dizem, o seu objectivo, serviu para excluir um aluno, simplesmente porque este pensa de maneira diferente (ou seja por não querer ter sido praxado). Nesta situação a praxe serviria, não como actividade de inclusão, mas de exclusão social.    

Proibir a praxe seria um atentado à liberdade dos alunos
Concordo plenamente! Sou contra a proibição por dois motivos: Primeiro, como exactamente é que se poderia proibir a praxe? A praxe não tem uma definição específica. Podemos proibir o uso de penicos na cabeça na via pública mas logo os alunos inventariam outra coisa qualquer. Podemos proibir a praxe dentro da universidade mas os alunos juntar-se-iam noutros locais fora do perímetro proibido. Portanto, não sei como se poderia em termos legais proibir a praxe. Por outro lado, qualquer abuso que possa eventualmente ocorrer durante uma praxe já pode ser denunciado como crime por isso inventar mais proibições seria redundante.
Depois, apesar de ser veementemente contra a praxe, sou um defensor da liberdade, e portanto se um aluno, mesmo sabendo exactamente o que é a praxe (porque muitos não sabem no que se estão a meter) quiser ser praxado e/ou praxar então que o faça, eu nunca o impediria. O que eu faço é apresentar os argumentos pelos quais eu acho que a praxe não devia existir, e se dessa maneira convencer alguém a não participar, tanto melhor. Mas se eu quisesse impor a minha opinião como lei, aí sim, seria um atentado à liberdade, que, como digo, defendo. O fim da praxe não se consegue com questões legais, mas sim denegrindo a imagem deste ritual ridículo para que os jovens caloiros não queiram participar e assim, com os anos, o número de praxes ir diminuindo até à eventual extinção.  

Só é praxado quem quer, portanto qual é o problema?
Realmente, a praxe não é obrigatória (era só o que faltava), mas o problema é que é dado a entender aos caloiros que se não forem praxados serão excluídos e não poderão trajar. Portanto no fundo, é chantagem. É natural que um jovem, geralmente na casa dos 17-20 anos que acaba de chegar a um ambiente novo onde não conhece nada queira integrar-se e ambientar-se o melhor possível. No seu íntimo até pode não querer ser praxado, mas a perspectiva de ser excluído levam a melhor e acaba por fazer algo que à partida talvez não quisesse. Claro que nunca é dito “se não fores à praxe não terás amigos” (até porque geralmente e felizmente isso é mentira), mas também nunca é dito ”se não quiseres ser praxado não te preocupes, quem não praxa é indiferente dos que praxam”. Isso nunca é dito porque os veteranos sabem que se isso fosse desde o início explicado aos caloiros, o número de participantes cairia a pique.
Quanto à questão do traje, é, realmente uma vergonha que algo como uma peça de vestuário que simboliza a vida académica da universidade tenha sido apropriada pela praxe. Como se um aluno não tivesse o mesmo direito a usar a indumentária quer tenha ou não sido praxado! De toda a questão da praxe, é a única coisa que, na minha opinião, se aproveita mas que, infelizmente, muitos dos alunos estejam privados de usar sem serem alvo de condenações só porque pensam de maneira diferente e não foram com o resto do rebanho. Lamentável.    

As supostas vítimas mortais não foram culpa da praxe
Acho impressionante que sempre que alguém falece em contexto académico, mesmo que não se saiba o que aconteceu ao certo, os apologistas da praxe vêm logo a correr dizer que a culpa não foi da praxe ou que o que estavam a fazer não era praxe. Como sabem? Pelo menos no caso específico de Cristina Ratinho, do Instituto Politécnico de Beja, sabe-se que teve uma paragem cardíaca durante a sua praxe. É verdade que a jovem já sofria de problemas de coração, mas isso não foi o suficiente para a impedir de querer ser praxada. No fundo, ser vítima da chantagem que é a praxe. Nos casos específicos e mais mediáticos que foram a tragédia do Meco e do muro da Universidade do Minho, de onde resultou um total de oito mortos, dizer que aquilo não era praxe é atirar areia para os olhos a tentar esconder o facto da praxe ser o verdadeiro problema. Mesmo que as actividades que os alunos estavam a desempenhar não fossem tecnicamente praxe, essas actividades não ocorreriam se não existissem as praxes. 
No caso da praia do Meco, nenhum dos alunos envolvidos era sequer caloiro, portanto, por definição aquilo provavelmente não seria uma praxe normal. Segundo foi noticiado, e não vale a pena fingir que os defensores da praxe têm mais “inside information” que qualquer outra pessoa, esses alunos estavam a realizar um ritual para seleccionar um novo Dux quando foram levados pelo mar. Ora, tecnicamente não era uma praxe, mas para que seria necessário escolher um Dux se a praxe não existisse? Aquilo foi feito num contexto de praxe, não tendo sido uma praxe. Se tivesse sido apenas um acidente entre um grupo de amigos que passeava pela praia durante a noite, então porque foram os alunos da sua universidade avisados (praticamente ameaçados) a não falar com os jornalistas e autoridades, especialmente sobre os seus rituais de praxe? Porquê tanta resistência do único sobrevivente, que até era o actual Dux, em falar e explicar o que aconteceu? 
Já no caso da queda do muro no Minho, a tragédia terá ocorrido durante uma “guerra de cursos” em que alunos do curso de engenharia informática e de medicina se insultavam mutuamente. Despiques ocasionais entre alunos é algo normal e até esperado, mas não me venham dizer que “guerra de cursos” ocorrem espontaneamente sem serem deliberadamente incentivadas. Que um aluno de informática insulte um aluno de medicina seria normal, mas que todos os alunos insultem não uma pessoa concreta, mas o curso em si (ainda para mais medicina e informática) é claramente ridículo e novamente, não sendo, provavelmente, uma praxe no sentido técnico do termo, foi seguramente, feito em contexto de praxe, ou seja uma espécie de ritual incentivado por um ou mais alunos com responsabilidade na comissão de praxe.           

(Vídeo "Prós e Contras - Praxes": https://www.youtube.com/watch?v=eo3lX_gIPo0)  

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